sábado, 13 de outubro de 2007

A China de dentro.



Não há poesia em português que descreva uma paisagem chinesa. O belo daqui tem que ser contado em ideogramas, em desenhos, imagens. Vou tentar com um pouco de prosa, brasileira prosa.
Olho pras fotografias que fiz semana retrasada na viagem e começo a perceber uma paisagem que não existiu tanto assim para mim, não tanto quanto agora que posso tocá-la, que posso tê-la aqui dentro do meu apartamento, no meu monitor, na minha posse. A beleza dos lugares que visitei, sobre os quais vou contar agora pra vocês, não pôde, infelizmente, ser disfrutada na sua totalidade, na sua poesia inerente. Porquê? Viajei na semana do feriado nacional chinês e todos lugares turísticos (que palavra mais estranha!) estavam lotados, abarrotados de….. turistas. Milhares e milhares deles, sem brincadeira. Fui para lugares cinematográficos, idílicos, que clamam um silêncio, um sentar e apreciar calado, um perder-se na imensidão das cores e distâncias. Tudo isso só pode ser projetado, imaginado, porque, com raras exceções, praticamente impossível no meio de um bilhão de chineses e suas inúmeras máquinas de fazer click, zoom e flash. Então parte do olhar que não dediquei à paisagem ao vivo, derramo sobre as minhas fotografias agora, disfrutando de cada tom do outono chinês. Vocês podem fazer o mesmo.

Esta viagem foi organizada pela universidade em que estou trabalhando, eles botaram dois pequenos ônibus e o diesel e nós bancamos o hotel e a comida. Foram alguns professores estrangeiros e um pessoal do departamento de intercâmbio da faculdade, chineses. Tínhamos dois destinos principais: Huanglong e Jiuzhaigou, ambos na província de Sichuan, ao sul de Shaanxi, onde estou. Partimos na segunda-feira, 1 de outubro, dia do aníversário da criação da Rep. Pop. Chinesa, e rodamos por 16 horas, primeiro por uma estrada grande, nova e rápida, em seguida descemos uma serra onde pegamos duas horas de congestionamento e depois por estradinhas pequenas metidas em vales estreitos. O trânsito que nos fez ficar parado foi a coisa mais absurda que eu já vi:

A maioria dos carros estava descendo e muitos espertinhos desciam pela contramão para ultrapassar os mais lentos. O problema é que eles não voltavam pra pista deles, formando filas de carros descendo na mão e na contramão. Acontece que tinha gente subindo a estrada também, e fazendo a mesma barbeiragem. Fudeu. Formou-se um gargalo onde ninguém conseguia passar. Muita burrice? Pois é, país meio comunista, mas indivíduos bem egoístas ao meu ver. Em meia hora formaram-se muitos quilômetros de tráfego parado, e quanto mais parava, mais gente tentava entrar na contramão. Tipo o idiota que atropelou 20 pessoas aí no Brasil semana passada. Na china é assim: espaço estreito, meu carro primeiro (aqui eles não têm pirão...). Jogando muita conversa fora e descendo do ônibus a cada tanto pra dar uma respirada e fazer umas fotos, passei as muitas horas de viagem de ônibus segunda-feira o dia inteiro. Chegamos no hotelzinho bem fuleiro, depois de nos perder um pouco, lá pela uma da madruga. No dia seguinte, após dormir umas 5 horas, assim que o mecânico consertou a caixa de câmbio que não deixava o motorista engatar a primeira marcha, rodamos até o meio dia, quando chegamos em Huanglong.

Huanglong (dragão amarelo).

Um teleférico te leva até o alto de uma montanha onde começa um caminho de madeira construído para os turistas passearem, dentro de um parque nacional chinês. A cabine é toda de vidro, dá pra ver toda a paisagem de folhas coloridas do outono da região. A subida é rápida, menos de um minuto para subir íngremes 600 metros. O ar é rarefeito lá em cima. Você pode comprar tubos de oxigênio portáteis bem barato. Anda-se um pouco e chega-se num platô de madeira com essa vista da foto aí de cima. Bati uns noodles instantâneos, tipo miojo, que você compra lá mesmo. Vem num pote com temperos que você abre, coloca água quente e fecha por uns minutos. Pronto. Em qualquer beira de estrada aqui na China dá pra encontrar um pequeno cilindro de aço com água fervente, de graça, pros seus noodles ou seu chá de toda hora.

Depois de comer, saí andando por esse caminho pela encosta da montanha, por uns 40 minutos. Comecei a ficar meio tonto por causa da falta de oxigênio, obviamente eu achei que sendo jovem e estando relativamente em forma eu não ia precisar. Estávamos a mais de 3000 metros de altura. Me sentia como se tivesse bebido além da conta, antes de vomitar. Sentei por uns minutos e continuei. Mais algumas centenas de metros e eu estava no topo do vale onde dorme o dragão amarelo. Parei num bangalôzinho onde se podia sentar e respirar um pouco de oxigênio de graça, paga-se só pelo tubinho, que é descartável.


Esse lugar tem esse nome por causa das piscinas naturais que se formaram ao longo de toda a descida desse vale. A cor tende para o amarelo, apesar da cristalinidade da àgua trazer verdes, azuis e muitas variações deles. A causa dessa beleza é a enorme quantidade de cálcio que habita essas montanhas, tira toda impureza da água, deixando-a muito límpida, e forma as tais calcificações, fazendo piscinas como faria estalactites dentro de uma caverna, ao longo de muitos anos.


Há um templo budista ao lado das piscinas principais, no topo da encosta. A paisagem que paira sobre toda essa região é de muita neblina, que vai deliciosamente cobrindo e revelando as montanhas cheias de amarelos, laranjas e vermelhos, além do tradicional, mas não menos interessante, verde.





No meio dessa história toda, quase uma dúzia de chineses pediu pra eu posar com eles para uma foto! Virei atração turística! Era só o que faltava. Tinha muita gente, raríssimos turistas, ninguém é bobo de viajar ao mesmo tempo que a China inteira. (...)




No fim da tarde, terminando de descer a encosta, cheguei de volta à estrada, onde estavam estacionados os ônibus. Viajamos umas 4 ou 5 horas e fomos pra um hotelzinho um pouco melhor que o primeiro, mas ainda bem sujinho, na pequena vila que têm muito mais hotéis que casas, na entrada do parque nacional de Jiuzhaigou. Comemos no hotel e fomos tomar uma cervejinha num restaurante qualquer ai perto pra comemorar o aniversário da Erika, professora americana que mora com o namorado polaco-alemão no apartamento debaixo do meu. No dia seguinte bem cedo saímos para o filé da viagem:

Jiuzhaigou.

Em Jiuzhaigou, você entra a pé e tem que pegar um ônibus deles até o lago principal, a noroeste do parque. Depois você vai voltando até a metade do caminho, vários quilômetros, um pouco a pé, visitando diferentes pontos bonitos, parte de ônibus, quando não tem muito que ver pelo caminho. Esses ônibus ficam circulando o tempo todo de pra lá e pra cá e você pode pegar quantos quiser, pra onde quiser. Os pontos mais bonitos estão na estrada nordeste, com muitos lagos transparentes.


Os lagos todos têm nomes do tipo grande tigre, dragão, grande, sazonal, e por aí vai. Por todo lado há placas em chinês e traduções, geralmente esdrúxulas, para o inglês. Costumamos chamar essas traduções de chinglish, porque eles traduzem muita coisa literalmente, sem muita noção de gramática nem concordância de inglês. Esse problema é comum em quase toda a China. Alguma hora vou fazer um post especial sobre isso, pois os professores daqui têm verdadeiras coleções de fotos de placas com o tal chinglish. Algumas vezes você caga de rir com as placas, outras vezes não dá pra ter noção do que elas querem dizer, parece com tradução feita por dicionário da internet.

Na província de Sichuan, onde se passa tudo isso, há uma grande concentração de pessoas de cultura tibetana. Dá pra perceber uma diferença na composição física dos rostos dessas pessoas e a comida é diferente daqui de Xi'an também. Na foto acima estão mãe e filha vestidas com roupas típicas tibetanas que elas alugaram pra vestir por uns minutos e tirar uma foto. Eu aproveitei e pedi pra tirar uma foto delas também. Os chineses são fascinados por fotografias, assim como os japoneses, e posam na frente de qualquer coisa diferente e/ou interessante, como lagos, estátuas, montanhas, turistas estrangeiros....




Não preciso falar muito da paisagem, as fotografias podem passar uma boa idéia do que é esse lugar. Era difícil ficar muito tempo apreciando uma vista apoiado no guarda corpo sem que um chinês viesse te pedir licença pra tirar uma foto de um parente contra a paisagem. Num dos lagos mais bonitos do parque, o diretor de cinema mais famoso aqui na China, Zhang Yimou, filmou Herói, montando umas casinhas de madeira na superfície da água. Quem nunca viu esse filme, eu recomendo muito, principalmente por causa da fotografia.

Dentro do parque há algumas vilas tibetanas, como essa que visitei. Essa bandeiras enormes tem mantras budistas impressos no tecido em toda sua extensão. Passamos por uma ruazinha que subia o morro cheia de lojinhas pra turistas, vendendo todo tipo de bugiganga e fomos procurar umas casas das pessoas que moram lá mesmo. Achamos uma tenda onde tomamos o tradicional chá tibetano, feito com manteiga do leite de Yak. Esse tipo de vaca é criado em toda a região tibetana, provendo seu povo de carne, leite e manteiga para esse chá que eles tomam o dia inteiro. Ele é preparado com açúcar, sal, chá preto e água fervente, além da manteiga. É praticamente um alimento, bom para o frio.



Fim do dia, saímos do parque e mais duas horas no ônibus da universidade até um hotelzinho, este com uma comida mais bacana. Depois do jantar saímos pra dar uma volta. Paramos num mercado de rua noturno pra comer uns espetinhos de yak apimentados, deliciosos, e tomar umas brejas sentados na calçada. Os bancos não tinham mais de 30 cm de altura, a mesa devia ter uns 40 cm. Total china. Aquelas pessoas ao nosso redor provavelmente nunca tinham visto estrangeiros na vida. É muito legal ver a reação dos chineses quando você entra em lugares onde não estão acostumados com ocidentais.
Quinta-feira, começando a volta por um caminho diferente do que usamos para ir, passamos o dia inteiro na estrada. Melhor dizendo, "a estrada". Por horas o motorista nos guiou por montanhas cheias de neblina e umidade, por caminhos que horas pareciam desmoronar para o rio lá no fundo do vale, horas estavam desmoronando de verdade. Guard rail era raro, cagava-se de medo. Mas a paisagem era impagável, sério. Passamos por dezenas de pequenas comunidades encrustadas nos morros, plantações de cogumelo, de milho (por toda parte) e chineses que paravam seu trabalho com o arado e olhavam para as janelas dos ônibus onde estávamos, cheios de curiosidade eles e nós.

Depois de toda essa experiência de misturar medo constante do abismo com fruição total dos olhos, paramos no melhor hotel da viagem, praticamente um 5 estrelas. A galera era só alegria. A comida era condizente. No dia seguinte, no caminho de volta para Xi'an, paramos neste lugar que não gravei o nome, onde está essa construção muito antiga usada na época para defender a estrada que levava à capital da dinastia, Xi'an. Tem um tipo de um platô na beira da estrada onde estão doze estátuas, cada uma um dos animais dos signos do calendário chinês. Posei com o meu, o porco. 2007, por acaso, é o ano dele.



Primeira viagem pela China, espero que tenham gostado do relato. Outras viagens virão, outras histórias e imagens junto.





(....)
Semana passada o tempo estava frio pra caralho e chuvoso, segunda-feira o tempo abriu e saiu o sol, termino de escrever este post sentado na varanda, com o computador no colo, aproveitando o ar fresco do final da tarde de Xi'an. Próximo fim de semana devo receber aqui em casa um casal que está viajando pela China, um argentino e uma francesa. Conheci eles no couchsurf, um site que organiza um banco de dados de viajantes dispostos a ceder um espacinho em casa para outros viajantes. Bem legal.


ciao!