domingo, 24 de fevereiro de 2008

Inverno para os olhos - parte 3


Parte 3 - De Lijiang (丽江) até a volta a Xi'an (西安)

Voltamos para o ponto de partida pegando uma "carona" que nos cobrou a metade do preço das vans que se oferecem perto da garganta. O dia já estava avançado e dormimos na mesma hospedaria em que tínhamos deixado nossas mochilas antes de iniciar a caminhada, ao lado da estrada. Manhã seguinte, fomos até a beira da pista pegar um dos táxis que se enfileiram para levar as pessoas para Lijiang, a umas duas horas dali. A estrada até lá, muito linda, com muitas árvores ladeando-a, estava sendo reformada e demoramos um pouco mais do previsto. Eu e Lauren não estávamos querendo ir pra essa cidade mas os franceses queriam passar um dia lá. Nós tínhamos que ir de qualquer forma, afinal, para pegar o ônibus para Dali, o próximo destino, então fomos todos juntos.
Chegamos no começo da tarde daquela quarta-feira e fomos atrás de um hostel que se chamava Mama. Muito sugestivo. A pequena hospedaria faz parte de um conjunto de três: Mama 1, Mama 2 e Mama 3, todas perto uma da outra no centro turístico da cidade e comandadas pela..... Mama. Só ficamos uma noite e mesmo assim tivemos a oportunidade de conhecê-la quando fomos jantar e tomar café-da-manhã no Mama 2, seu quartel general. Nas mesas do refeitório os viajantes se sentam uns com os outros para dividir a comida que ela vai trazendo com a ajuda de seus funcionários, todos com a mesma irreverência e espírito acolhedor que ela transmite. Pena não ter fotos dela ou do lugar, como tinha dito no post anterior, a memória da minha câmera tinha ido pro saco já, e eu não tinha conseguido ainda descarregar. A cidade era exatamente o que tínhamos previsto ouvindo os comentários de muita gente que tinha passado por lá: uma falsa cidade antiga, fake total. O lugar sofreu um terremoto que destruiu a cidade toda em 1996 e então decidiram construir uma nova cidade-velha no estilo chinês antigo. Em volta desse centro existe hoje uma cidade normal, moderna. O interessante então, teoricamente, está no centro, onde não entra carro. Todas as casinhas nas rua estreitas com pequenos e fofos (!?) canais passando pelo lado são ocupadas por lojinhas. Uma graça. Não tenho nenhuma foto, mas não precisa. É só imaginar como é, porque foi construído exatamente pra ser como você espera que seja uma antiga vila chinesa. Lijiang é legal, dentro do hostel da Mama!
Na tarde seguinte pegamos um ônibus para Dali (大理). Eram umas 6 da tarde quando entrávamos na hospedaria. Naquela noite ficamos tomando cerveja e jogando truco no estilo brazuca, que eu tinha ensinado pra eles. Confesso: não é muito divertido jogar um jogo como esse quando você é o único que sabe jogar de verdade e os outros três apenas sabem as regras mas ainda não aprenderam a malícia envolvida...
Com o sol lindo do dia, alugamos umas bicicletas e fomos para a estrada que vai para o norte, paralela às montanhas no vale onde está a cidade e onde há um lago enorme. Entre a estrada e a água, há muitas pequenas vilas e plantações por onde pedalamos, fugindo do asfalto e da fumaça do caminho principal. Antes de começar, consegui descarregar minha câmera e gravar um dvd na mesma loja onde arranjamos as bikes.

Num dos pequenos vilarejos em que passeamos, encontramos esta casa. Não entendemos direito do que se tratava, mas vimos que era ou tinha sido a morada de alguém importante por ali e uma senhora nos convidou à entrada. Esse senhor tinha jeito de saber muita coisa. Ele mantinha um livro de visitas no qual anotamos algumas coisas e nossos nomes e nacionalidades e no qual espiamos comentários de outros gringos.


Já bem longe de Dali, entramos numa cidadezinha onde havia este mercado. As pessoas todas ali eram de um etnia que não consegui descobrir o nome, mas que tem esse chapéu feminino característico. Essas "mochilas" de bambu são uma unanimidade não só nessa etnia, mas em todos os povos do sudoeste da China.

Ali perto encontramos uma mulher que nos levou para conhecer o lugar onde eles produziam estes tecidos e roupas coloridas com essa técnica de desbotamento:



Eu comprei um pano da produção deles e pedi um retrato à ela.


Pedalamos o dia todo, voltando pra Dali só no final da tarde, exaustos. Meu azar com bicicletas alugadas começava naquela vez. No meio do passeio, percorrendo um caminho entre plantações, meu câmbio soltou uma engrenagem. Consegui levar a bike até um cara que mexia com rodas de caminhão pra botar a peça no lugar e seguir adiante. Sem palavras para o tempo.

Dali é uma dessas cidades com um centro antigo, cercado por uma muralha e com mistura de novas e antigas construções. Muito turística mas, ao contrário de Lijiang, com muita coisa linda pra ir ver em volta. E a cidade em si tem um certo charme.


Depois da segunda noite, no sábado de manhã, passeamos um pouco pelas ruazinhas ensolaradas observando os turistas chineses que já começavam a chegar para o festival de primavera, o ano novo chinês, e, logo depois do meio-dia, pegamos o ônibus para Kunming (昆明), a capital da província de Yunnan, a algumas horas de viagem. Quando chegamos, fomos direto para a estação de trem para comprar as passagens dos franceses e de Lauren.

Estava assim lotado por causa do feriado. Max e Martin iam para Beihai visitar alguns amigos na segunda e Lauren seguia para Hongkong na terça para pegar seu vôo para os EUA, visitar sua família. Eu ainda não sabia o que ia fazer mas, de qualquer forma, podia esperar o feriado passar, ainda tinha tempo.


No hostel onde ficamos, Laurent (não confundir com Lauren), um francês da Martinica (ilha no Caribe), veio se juntar a nós. Ele é colega dos outros dois, estudam chinês todos juntos em Pequim.

Vi muitas crianças pedindo dinheiro e fazendo essas estripulias por uns trocados pelas ruas de Kunming. Um dia eu estava no centro, perto do hostel, e vi uma menina de 5 anos que ficava todo dia ali fazendo contorcionismo na companhia do irmão. Naquele momento, uma mulher parou e falou alguma coisa pra criança que começou a fazer um outro exercício na mesma hora enquanto a mulher ia embora, provavelmente a mãe, desgraçada!

Pato assado pra vender na rua!!

Bem, os dois franceses foram para Beihai, Lauren foi embora e Laurent e eu combinamos de ir pra Yangshuo, na província vizinha de Guangxi. Porém, naquela semana era o ano novo chinês e ele foi convidado por uma chinesa que trabalhava no hostel para passar o festival na casa da família dela numa pequena vila não muito longe da cidade. O resultado é que eu tive que ficar quatro dias sozinho esperando pra poder viajar com ele.
Não tem muita coisa pra fazer em Kunming, então decidi alugar uma bicicleta para pelo menos me divertir um pouco. Fiquei os quatro dias com uma puta mountain bike na mão que saiu meio carinha mas valeu a pena.

Todos os dias lá estavam ensolarados com céu azul e temperatura gostosa. A cidade, dizem, é privilegiada por causa de sua posição. No verão, não faz muito calor nem faz muito frio no inverno. Foi uma delícia, eu ficava o dia inteiro pedalando pela cidade indo para as periferias procurando por lugares interessantes.


A magrela está posando em frente à vendinha onde almocei um instant noodles.

Gaivotas, num dos lagos de Kunming, vinham buscar os pedacinhos de bolo que eu lhes atirava.

Na noite do dia 6, a festa da virada no hostel com os outros hóspedes. Fizemos dumplings, prato típico nos eventos especiais. O hostel providenciou a massa e o recheio e a galera se aventurou na arte de fechá-los


No dia seguinte, tudo fechado, tive que almoçar uns espetinhos : dois de tofu, um de carne e um de vegetais. Esses espetinhos são uma delícia e estão por quase todo lugar na China, super temperados inclusive com o realçador de sabor glutamato monossódico, o famoso MSG dos americanos, (o BigMac tem um monte disso) usado na culinária chinesa como o sal.

Numa estrada bem nova que saía para o sul da cidade, topei com esta pipa presa nos canos de água de uma ponte. O pai, que empinava com o filho, veio ver se conseguia tirar e ficou só olhando, era muito alto e tinha um buraco enorme separando a pista do cano. Eu parei a bicicleta num lado e fui ver se conseguia tirar. Consegui puxar o fio que estava cruzando a estrada logo acima da minha cabeça e soltei o papagaio. O pai estava de volta na praça, já longe de mim. Quando virei minha atenção para eles, esperando um aceno, um obrigado, qualquer coisa, tive que me contentar com minha própria satisfação de ter ajudado, porque eles nem sequer olharam pra na minha direção e continuaram empinando a pipa. Chineses.

No sábado, dia 9 de fevereiro, Laurent voltou a Kunming e nos encontramos para pegar o trem.


Chegamos em Yangshuo (阳朔) na tarde seguinte, depois de pegar um ônibus em Guilin, destino final do trem. Yangshuo é uma pequena cidade no meio de uma natureza maravilhosa, cheia de rios e morros de pedra, como mostro agora.

Max e Martin chegaram naquela mesma noite para se juntarem a nós. No primeiro dia fomos dar um passeio de barco pelo rio.

Não há nada ao redor do rio por muito tempo até que se chega numa praia de pedras, o ponto final do passeio, antes de voltar, e todos os barquinhos param lá para você dar uma olhada. Tem gente vendendo chá, ovos cozidos, coisas para comer e beber. Isso no meio do nada.


Patos. No meio da estrada, sendo tocados por sua criadora e depois no mercado.



Na China, eles gostam de carne fresca, não usam refrigeradores para vender a carne. É tudo matado no dia ou na hora.... Nos mercados dessa área vi muita gente vendendo cachorros. Vi alguns em gaiolas esperando seu momento de virar comida. Fiquei mal com essas cenas e não tive a cara de tirar foto. Acho que vocês não gostariam de olhar de qualquer forma.

Nos três dias seguintes alugamos umas bicicletas para dar uns rolês pela região. No primeiro dia, paramos para perguntar por restaurantes numa pequena vila. Não havia nenhum por perto e o cara para o qual tínhamos perguntado foi logo convidando a gente pra comer na casa dele, por uma modesta quantia. Aceitamos.




A paisagem ali é uma das mais bonitas que já vi na vida e bicicleta é a melhor maneira de passear por lá, muitas estradas de terra e caminhos à beira dos rios. Porém, a falta de sorte com elas continuou. Logo na saída da casa do chinês, meu câmbio entrou dentro da roda e quebrou alguns aros. Tive que pedalar de volta forçando a pedalada por causa do pneu que estava raspando no quadro. É como tentar acelerar um carro com o freio de mão puxado. Mas tudo bem, foram só 9 kms e a o pôr do sol era este:



No segundo dia vimos o famoso morro da Lua, acho que dá pra sacar:

Tinha que pagar pra entrar no parque onde fica esse morro. Não entramos e observamos de longe mesmo, não gostamos de exploração e, como vocês já devem ter percebido, os chineses são especialistas em explorar turistas.
Encontramos uma caverna numa estrada em que estávamos e fomos dar uma olhada. Não havia ninguém por perto para cobrar entrada...
De la gauche a la droite: Laurent, Martin, moi, Maxime.

Quando voltei para pegar minha bicicleta, o pneu de trás estava no chão, sem ar. Puta que pariu! Tive que empurrar por 40 minutos até achar um borracheiro. Isso porque não tinha nada por perto, porque a china tem mais bicicletarias do que bancas de jornal.



Naquele dia jantamos o famoso peixe na cerveja, típico da cidade, mas, ao invés de ir num restaurante, compramos os ingredientes com o pessoal que trabalha no hostel e eles cozinharam. Nós pagamos, eles cozinham e todos comem. Bem justo e uma delícia.


Yangshuo foi maravilhoso, não tem mais muito que falar.



Sexta-feira, dia 15, fui até Guilin com os franceses para pegar meu trem de volta. Eles também iam começar o caminho de volta naquela tarde. Minha viagem até Xi'an durou 27 horas. Como estava sozinho no trem, fiquei bem entediado no segundo dia: o único livro que levava comigo não era lá muito interessante e eu já tinha ouvido toda a música na memória do meu mp3 player.


Cheguei em Xi'an no final do segundo dia, lá pelas 21h. Estava feliz de chegar de volta em casa, muito satisfeito de poder tomar uma ducha quente no meu banheiro, ver meus emails no meu computador e dormir profundamente na minha própria cama depois de 30 dias viajando. Nesse tempo, passei por três províncias no sudoeste chinês e passei por muita coisa que vou guardar pelo resto da minha vida, sem brincadeira.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Inverno para os olhos - parte 2



Parte 2 - De Litang (理塘) a Tiger Leaping Gorge.

Como eu ia dizendo, tivemos que pagar uma puta grana pra chegar em Xiangcheng, a pequena cidade na montanha de onde sai o ônibus para Shangrila. A paisagem no caminho era de tirar o fôlego e, como não tinha nevado ainda, era tudo tons de marrom, verde e céu azul.


Este sujeito aí embaixo foi o cara que levou a gente na sua mini-van até metade do caminho. Sim, metade do caminho, porque no meio da estrada cruzamos com outra mini-van que vinha fazendo o caminho contrário com passageiros dentro. Os motoristas pararam por um minuto pra conversar e em alguns instantes trocamos de carro com os outros viajantes, assim cada táxi podia já voltar pra sua cidade de origem. Pros passageiros não fazia diferença mesmo... Muito esperto esse povo.


Chegamos já de noite no pequeno hotel e tivemos o primeiro banho (quente!) depois de 3 dias. Na manhã seguinte, madrugada na verdade, fomos até a rua em frente à rodoviária (um pedaço de terra batida) e esperamos o motorista acordar na pequena casa de madeira onde dormia perto do seu ônibus e vir abrir a porta pra gente. Entramos, pagamos a passagem e esperamos uma meia hora até que saímos, o sol ainda não tinha raiado. Tínhamos que atravessar algumas montanhas pra cruzar a fronteira para a província de Yunnan. Perguntei para alguém: 到香格里拉, 多少时间?(quanto tempo pra chegar em Shangrila?), responderam seis horas. Pensei: "ótimo, vai dar pra curtir a tarde por lá".

Rodamos pelas montanhas por duas horas tranquilamente, o tempo estava seco e firme. Logo depois começamos a subir uma encosta onde já estava nevando. A alguns quilômetros do final da subida, o ônibus pára, atolado na neve. Eu estava distraído, nem lembro fazendo o quê, talvez ouvindo um som e, quando olhei pela janela, tinha muita neve do lado de fora. O motorista tentou tirar a roda do buraco acelerando mas não conseguiu. Ele desceu do ônibus em seguida e alguns passageiros foram com ele. Foram colocar correntes nos pneus. Não sei como estávamos rodando até aquele momento sem elas, mas enfim.


Puseram o negócio lá e começaram a cavar a neve em frente às rodas pra tentar desatolar o busão. Eu desci e fui tentar ajudar, reparando que todos os passageiros, além de nós dois e de outros dois estrangeiros, eram tibetanos. Os caras são grandes e pareciam bem acostumados com neve e com esse tipo de situação, usavam pás e picaretas pra abrir as duas valas que precisávamos para continuar.
Subimos de volta e o motorista deu uma ré pra pegar um pouco de velocidade. Conseguimos andar não mais de 20 metros. Atolamos de novo.


Eu, inocente, achava que tinha acabado, que era desatolar e mandar bala pra Shangrila. Pobre. Descemos de novo e fomos fazer a mesma coisa, quer dizer, eles, porque eu já estava exausto depois de 5 minutos cavando neve numa altitude onde o ar era bastante rarefeito e frio (eu também não estava muito em forma, é verdade). De volta ao ônibus, desta vez tivemos que ir todos para o fundo para fazer peso nas rodas de tração. Eu já estava bem nervoso nessa hora, pensando quanto tempo aquele atola-atola ia durar. O cara começa a pisar no acelerador e em vez de ir pra frente, a parte de trás do ônibus vai deslizando em direção ao desfiladeiro.
Eu suava frio nesse momento, já pensando de verdade o que fazer se de fato fôssemos morro abaixo. Pela primeira vez na minha vida pensei de fato na possibilidade da minha morte e confesso: assusta. Muito. Muito. Não sei se os tibetanos estavam muito preocupados com o perigo, mas o clima estava bem tenso, isso dava para sentir.
Depois disso conseguimos continuar mais algumas dezenas de metros até parar de novo. Respirei fundo e fiquei pensando: esta viagem vai ser foda...


Ficamos umas quatro horas nessa história de atola-cava-cava-empurra-empurra-sobe-desce para rodar uns 2 km e no meio disso, em vários momentos, eu olhava pela janela e via o precipício se aproximando e a roda deslizando em sua direção. A subida acabou e começamos a descer. Como vocês sabem, pra baixo todo santo ajuda. Empacamos mais algumas vezes mas não foi difícil prosseguir então. Pouco mais de uma hora depois chegávamos a uma pequena vila num vale entre as montanhas cheias de neve e paramos para almoçar. Isso eram lá pelas três horas da tarde.


Comemos todos numa hospedaria que havia por ali. Não pensem que a companhia pagou o almoço ou algo assim, aqui na China não existe isso. Uma hora depois voltamos para o ônibus para prosseguir, tinha mais uma montanha das grandes para vencer. Começamos a rodar e a mesma história, desta vez era ainda mais neve na estrada e os caras se ligaram que não ia rolar. Meia volta, volver, e vamos de regresso à vila. No caminho de volta atolamos e o motor morre. Nada de fazer o bicho pegar de novo. O pessoal abre o capô e começa a fuçar. Eu olhava pra cara da minha amiga e dizia com os olhos: fala sério, de verdade. Começava a escurecer e os caras lá tentando. Noite veio e decidiram que íamos andar a pé até a hospedaria. Pela primeira vez, depois daquilo tudo, me senti aliviado e seguro. Adorei poder caminhar por uma hora na neve sem enxergar picas, pelo menos eu estava seguro da minha sobrevivência, nos meus pés eu confio bastante e , além disso, foi bom pra esquentar, eu estava cagando de frio já.
Tivemos que rachar um quarto não dos mais baratos e o motorista disse que sairíamos na manhã seguinte. Eu estava feliz de estar em "terra firme" mas preocupado com o próximo dia, pensando que começaria tudo de novo.
Quando acordamos, já tarde, percebemos que não estava rolando um movimento de "vam'bora". Depois de muito insistir no mandarim, meia boca dos dois lados, do nosso e do lado dos tibetanos também, chegamos à conclusão que naquele dia não íamos a lugar nenhum.
Os outros estrangeiros, nessas, já estavam com a gente o tempo todo. Dois franceses de 20, 21 anos, alunos de chinês em pequim, muito gente boa. Decidimos ir dar uma volta e conhecer a vila, que solução.
O lugar tinha várias casas, uma afastada da outra, que formavam uma comunidade tibetana rural. Paramos para prosear com uns sujeitos que estavam tirando a neve de uma pilha de lenha. Na foto está Martin mostrando o trajeto de sua viagem num atlas chinês.


Depois de uns minutos, eles se despediram e foram andando para casa. Alguns passos de distância e eles param e acenam pra gente, chamando para ir junto. Estavam nos convidando para almoçar com a família deles.
Sem muito que falar, uma experiência inacreditável. Ofereceram o chá de manteiga de yak (vaca do Tibete), queijo de yak defumado servido com açúcar cristal, arroz e carne com batatas. Tudo parecia mágico. Só o pai e o filho mais velho falavam mandarim, a mulher, a sogra, o vizinho e o filho menor ficavam só olhando pra gente, oferecendo coisa e conversando entre eles em tibetano.
Nessa foto o cara está fazendo o chá, socando a manteiga na água fervente.





De volta a hospedaria, passamos o resto do dia assim:



Olha o que esses muleques fizeram com a neve:

Esse aí é um fazendeiro, tem família grande e planta milho.


Este outro não falava mais de duas palavras em mandarim.

De noite nos mudamos pra uma outra hospedaria, uma casa em frente ao lugar onde estávamos, onde pagamos bem mais barato. Começamos a beber bai jiu (álcool de arroz) e comer queijo fresco que encontramos por lá para comprar. Estávamos muito felizes. Os dois franceses se mostraram verdadeiros paus-d'água e eu tive que acompanhar, bebemos uma garrafa cada um. A família que morava ali estava meio que fazendo festa pra nós, os gringos. Esse garoto dançava pra gente ao som de uma música tibetana que tocava no celular de seu pai.

O cara da direita era o cozinheiro da primeira hospedaria, acabou o serviço e veio se juntar. Os amigos dele fizeram ele cantar, falando que ele mandava muito bem. Era fato, ele soltou a voz e, na sequencia, fizeram a gente entrar na onda e mostrar ao vivo umas músicas de nossos lugares de origem. Foi bem honesto.




No dia seguinte acordamos cedo e o ônibus tinha sido trazido pra frente da hospedaria, estava funcionando. Achamos que era aquilo mesmo e todo mundo entrou e esperou, mas, por algum motivo, disseram que não iríamos com ele e, sim, na caçamba de um pequeno caminhão que tinha acabado de chegar, nós todos mais os passageiros de um outro ônibus que também não tinha passado dali. Éramos mais de quarenta com toda a bagagem na traseira de um caminhão que parecia desses de transportar terra de construção. Ele estava equipado com correntes e pesado que só, foi subindo a montanha muito bem, sem derrapar nem atolar. Uma hora depois emperra, a neve estava lá pelos 50 cms. Cavam um pouco, tentam sair e a corrente estoura. Todos pegamos nossas malas nas costas e começamos a andar sendo que nós, os estrangeiros, não tínhamos idéia de até onde ou por quanto tempo. Tudo certo, já tínhamos considerado andar os 50 kms daquela montanha no dia anterior porque parecia que veículo nenhum poderia atravessar aquela neve toda. Acabamos andando 10 kms, segundo informações confiáveis. Subimos o resto da montanha numa caminhada com uma vista estúpida de linda mas lá em cima era uma nevasca, uma ventania de gelar os ossos, devia estar fazendo uns -15ºC e a neve pelos joelhos, ou pelas coxas em algumas partes. Acho que durou umas 3 horas isso tudo. Eu estava bem fora de forma (estava, agora não estou mais), parei pra descansar umas vinte vezes no caminho. Não tenho fotos dessa parte da viagem porque minha câmera estava bem protegida, muito profundamente colocada dentro da mochila grande e eu também acho que não tinha condições de ficar tirando foto.
Descendo um pouco a montanha encontramos com um pequeno ônibus que estava parado ao lado de uma picape. Provavelmente estavam ali para a nossa emergência, esperando, quero acreditar. Eu não fazia mais perguntas, meus pés estavam gelados agora que a neve que tinha entrado nos meus sapatos tinha derretido e formado um pequeno lago glacial nas minhas meias, eu só queria ir embora. E fomos. De pé no busão, depois sentado na caçamba da picape, chegamos 2 dias atrasados em Shangrila. Ninguém podia conter a alegria, principalmente nós, os gringos.
Pegamos um táxi e fomos direto com os franceses, Martin e Maxime, para uma hospedaria. Aluguei um quarto com a Lauren que tinha calefação e chuveiro com um boiler próprio. Passamos o resto do dia descansando perto do aquecedor, tomando banho quente, bebendo chá fervente e por aí vai.


Depois de toda essa aventura, eu aprecio muito mais o fato de estar vivo, existindo, respirando e tudo mais. Não vou ficar enchendo o saco de vocês aqui, só saibam que aquelas montanhas mudaram minha vida.
...


Shangrila, que só ganhou esse nome em 2001, chama-se na verdade Zhongdian. O governo da província (ou foi o municipal? ou os dois juntos?) decidiu mudar o nome da cidade para o famoso lugar mágico do livro Horizonte Perdido, do inglês James Hilton. Puro golpe publicitário para atrair turista. A cidade não tinha nada de especial, talvez tivesse alguma coisa legal perto dali mas não queríamos ver mais neve por enquanto. As ruas até que tinham bastante neve empilhada nas calçadas. Detalhe, o calçamento era de pedra lisa, dava pra patinar de tênis (?!).
Fomos no dia seguinte visitar monastério da cidade, o maior do sudeste asiático ou coisa do gênero, com mais de 600 monges vivendo nele.


Os monges eram figurassas aqui, não que em outro lugar não sejam, mas os daqui eram além do previsto. Quem sabe é por causa da quantidade em que vivem nessa que é praticamente uma cidade. Esses daí estavam fazendo mutirão para tirar a neve de um dos pátios dos templos.

Saindo de Shangrila, fomos, ainda com Martin e Maxime, mais ao sul, para um lugar chamado Tiger Leaping Gorge, algo como "a garganta do salto do tigre". Faz-se uma caminhada de dois dias por estas montanhas acompanhando o curso do rio Yangtse (o maior da china) que passa lá em baixo. As águas se estreitam entre duas serras altíssimas e paralelas, muito próximas uma da outra e bem íngremes. Neve só no topo, por onde não se passa.




Deixamos as mochilas grandes numa hospedagem na entrada do parque e levamos só o essencial, menos os franceses, que levaram tudo pensando que não iam voltar para o ponto de partida e, sim, seguir viagem a partir do final da trilha, coisa que não aconteceu. Bom pras pernas deles...
No primeiro dia, tem uma parte que o caminho sobe que nem elevador, só pra cima, pra cima, pra cima. Eu quase morri, desta vez de exaustão. (Fiquei xingando Xi'an, que é poluída pra caralho e por causa disso não tinha ainda comprado uma bicicleta e tal [estava mesmo fora de forma]).
Na foto: Maxime fazendo a preza do chá quando chegamos cansados no hostel onde íamos passar a noite no meio da floresta.

O dia 2 foi mais tranquilo. Basicamente reto e descida. Lauren, que sempre estava na frente nessas ocasiões, desta vez ficava pra trás pois não andava bem do estômago, coisas da China.


Quando terminamos a trilha, demos na estrada que leva à garganta propriamente dita. Ou seja, pode-se ir de carro também, o que não deve ter a mínima graça. Aí, pra ir ver rio de perto e a garganta lá de baixo, tem que descer uns 200 metros de altura por uma pequena trilha tortuosíssima e pagar pra uma moça que fica lá no meio cobrando porque parece que foi a família dela que construiu o caminho. Ok. Depois, quando se chega no rio, tem uma outra mulher querendo cobrar a mesma quantia, cerca de 1 euro (parece pouco, mas dá pra almoçar e jantar com essa grana às vezes), para você poder subir nas pedras enormes que estão no rio, só porque ela que botou uns pedaços toscos de madeira entre uma pedra e outra. Ela chama de ponte. Eu chamo de oportunismo de vagabundo. Dava pra pular com facilidade de uma pedra pra outra sem usar as tais pontes... ridículo.
Chineses exploradores de turistas à parte, a vista era um tezão. São dois paredões gigantescos, altos, a menos de 30 metros um do outro, com o rio turbulento passando no meio e você praticamente dentro do rio.
Essa foto eu tirei antes de, de fato, chegar lá embaixo. Nessa hora acabou a memória da câmera, que só fui conseguir descarregar e gravar um dvd três dias depois, em Lijiang


Ok, vocês não devem estar aguentando mais ler, mas façam uma forcinha pra ler o próximo post também. Prometo que darei uma trégua depois, hehehe.

suerte! tchau!