quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Rotina

Bem, não tive muito tempo pra escrever ultimamente, justamente por causa do tema desta postagem. Vim falar sobre como andam rolando minhas aulas por aqui, mas antes quero dizer que tá um frio do caralho, isso que falta um mês para o inverno. Do país tropical-abençoado-por-deus para o frio-oriental-abençoado-pelo-Mao. Depois de dois meses sem ter que trabalhar, finalmente comecei a pegar no batente. Estou dando aulas na universidade três dias por semana, duas aulas de 100 minutos por dia. Segundas, quartas e quintas eu levanto às 8 da manhã, como uma banana amassada com aveia e mel, tomo um chá verde ou algo assim, e às 9:20 sai a van que leva alguns professores para o outro campus da universidade. Leva mais ou menos 1/2 hora pra chegar lá. Se quiserem dar uma olhada nesse campus, tem uma postagem de dois meses atrás com umas imagens. Nos dias que eu dou aula, tenho uma turma de português pela manhã, das 10:00 às 12:00, e uma de espanhol das 14:00 às 16:00. Nessas duas horas que eu tenho livre, eu almoço, estudo um pouco, fumo um cigarrinho e dou uma relaxada na sala do departamento de português. Às 16:10 sai uma van de volta pro campus antigo, onde moro, mas em geral eu não pego essa van e, sim, um ônibus de linha no qual eu posso ir junto com um dos meus estudantes de espanhol, um cara da minha idade que não perde uma chance de praticar a língua. O cara é meio mala. Se não fosse chinês eu chamaria de BOTA! Mas ele é legal, inteligente, até me ensina um pouco de chinês.

Essa aí é a minha classe de português.


É a primeira turma desta língua na universidade, e por enquanto a única. São uns 30 e poucos alunos, mais de dois terços do sexo feminino. Dou aulas pra eles segundas e quintas nesta sala pela manhã, e quartas numa outra sala, onde posso passar uns vídeos. Estamos passando a série de documentários O povo brasileiro, baseados no livro de mesmo nome do saudoso Darcy Ribeiro. Imaginem que pra um chinês aprender português é praticamente tão difícil quanto pra gente aprender a língua deles, com a diferença que eles já tem um contato prévio com as letras que usamos, por causa do inglês que aprendem (mal e porcamente) nas escolas.
Eles são bem simpáticos em geral, meio infantis, meio tímidos, o povo daqui é mais ou menos assim em qualquer lugar. Todos têm muito respeito por mim, creio que o mesmo que têm por qualquer outro professor, e somem a isso a curiosidade que um estrangeiro de 1,90 com barba e bigode suscita neles. Posso fazer a classe toda rir só fazendo um par de mímicas para explicar uma palavra nova ou falando algo em chinês, o que aliás é perfeito pra chamar a atenção deles quando estão distraídos ou com sono. Parece colegial. Os coitados, com toda a dificuldade de aprender uma língua ocidental, ainda tem que lidar com o fato dos dois professores estrangeiros que eles têm serem brasileiros e a professora chinesa ter aprendido português de Portugal. Aliás, ela parece não falar nem esse português muito bem, pois minha comunicação com ela é uma coisa super travada. Eu e o outro professor, o José, já explicamos pros alunos que vamos ensinar, nas nossas aulas, o português falado no Brasil, que tem 185 milhões de habitantes, contra os 11 milhões de Portugal. Precisamos urgente mudar o nome da língua do Brasil para "brasileiro", senão vão continuar confundindo com Portugal e continuar achando que essa língua, que já é famosa por causa do Brasil, pode ser aprendida de Portugal.
Quase todos os estudantes têm uma garrafinha de plástico ou metal com água ou chá dentro. Entre as meninas é bom comum ver elas usando uma proteção de ante-braço para não sujar a manga do casaco. Dá pra ver na foto uma menina em primeiro plano usando isso. Deu 11:40 e eu libero eles pro almoço e eles saem com bastante pressa, pois há apenas uma cantina, gigante, tudo bem, pra 10.000 estudantes almoçarem.
Aí vai uma fotinho da manada debandando em direção ao refeitório:

Reparem na neblina que habita esta cidade metade dos dias do ano.
Esse campus foi inaugurado há uns dois anos, mas foi feito bem nas coxas, como diríamos no Brasil. Tem infiltração pra todo lado, pintura desbotando, remendo na elétrica, na hidráulica... Tem uns 10 prédios de salas de aula com 5 andares cada um, sem elevador, conectados por passarelas um ao outro e outros 10 de dormitórios. O chão das passarelas é de pedra lisa e, quando chove, é sola de borracha pra que te quero. Imaginem se nevar e tiver gelo..... Metade dos edifícios tem os andares em forma de anel em volta de um pátio aberto, ou seja, você abre a porta da sala e já está praticamente ao ar livre. Nos outros prédios tem uma corrente de ar frio tão forte nos corredores que parece que você está do lado de fora. E haja calefação! Aproveitamento de energia? O que?? Onde?? Hã??
Os estudantes não ligam, claro, são chineses tanto quanto o cara que desenhou e o outro que construiu esse lugar. São todos frutos de uma mesma cultura que ainda não tem essa noção de...de....de sei lá do quê. E posso afirmar que eles são felizes por aqui, trabalham muito, estudam bastante (do jeito deles) e praticam esportes de todo tipo. Ou seja, ocupam seu tempo, fazem muitas coisas.

As aulas de espanhol, depois do almoço, são mais simples que as de português. Dou a mesma matéria pra três turmas diferentes durante a semana, ou seja, só tenho que preparar uma aula por semana pra eles. Além disso, são aulas opcionais, eles não são obrigados a ir, então só vai quem está interessado, o que é ótimo. São mais ou menos 14 alunos em cada aula dessas.

É engraçado dar aulas de duas línguas distintas no mesmo dia. Parece que eu tenho que trocar de máscara. Em cada língua eu me esforço pra passar um pouco da cultura, os nomes das comidas, dos ritmos musicais e expressões comuns, então eu meio que incorporo o Brasileirão de manhã e o Argentino de tarde. Às vezes me sinto atração turística na sala de aula, quando os alunos pedem minha permissão para tirar uma foto comigo ou quando eles, no meio da aula, disparam flashs na minha direção.
......

Nos dias que não dou aula, terças e sextas, eu tenho 90 minutos para aprender um pouco de chinês com esta moça aí em baixo. O nome inglês dela é Skye, não me perguntem o nome em chinês.

Eu pago por hora por estas aulas que estão me rendendo bastante e eu estou de fato começando a falar a língua dos caras. Esse lugar fica a meia hora de caminhada do meu apê, no térreo de um prédio bem novo num conjunto habitacional de classe média. É um apartamento que foi todo dividido em saletas para receber estrangeiros em aulas particulares. Eu geralmente fico nesta varanda fechada com esta vista calma e gostosa. Essas aulas de chinês são muitas vezes estressantes, porque é um esforço descomunal tentar construir frases quando se é um estudante iniciante em uma língua tonal como é o chinês. Eu estudo sozinho outras 6 ou 7 horas por semana pra acompanhar as 3 horas de aula semanais. Está dando certo, estou feliz com a minha precária comunicação com os poucos chineses com os quais tento balbuciar um diálogo.

......

Quase toda sexta-feira vem um pessoal aqui na minha casa, quase todos professores, para tomar uma cervejinha e ouvir um som. Experiência incrível, vou contar pra vocês, é ter falantes de alemão, inglês, espanhol, português e chinês, tudo ao mesmo tempo na sua casa. Uma das coisas mais impressionantes que estou vivendo aqui é falar às vezes 4 ou 5 línguas diferentes no mesmo dia. Falo até um pouco e francês e italiano de vez em quando. Rumo ao poliglotismo!!! Amanhã à noite vai rolar um jantar cultural com a maioria dos professores daqui. Cada um vai levar uma comida pra representar seu país/região. Vixe! Tudo que consegui pensar com os ingredientes que encontrei no supermercado foi num caldinho de feijão. Vai saber se vai dar certo, só achei pra vender um feijão preto que tem o tamanho de um grão de arroz...


Acabo de receber mais um hóspede pelo Couchsurfing aqui em casa, desta vez um advogado japonês que está viajando... há só um ano (!!!). O cara já viajou quase a Ásia inteira. Vou tentar aprender um pouco de japonês.
Beijos!!

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O exército vermelho e o Rio Amarelo.


Há três semanas atrás fiz mais uma viagem, desta vez menor, só um sábado e domingo. Mas foi muito legal apesar da duração. Novamente, foi a universidade que organizou e levou a gente no busão deles. Fomos pra dois lugares, pra Yanan e pra uma cachoeira no rio Amarelo, ambos no norte da província de Shaanxi, onde moro. Sábado, estrada boa, paramos pra comprar uma água num posto e eis que havia essa exibição explícita de carros acidentados com fotos dos corpos queimados e mutilados por efeito de ignorância no volante. Os caras pegam pesado aqui na China.



Yanan.

Yanan é uma cidade histórica muito famosa no país por ser o lugar onde o partido comunista assentou e tomou força pra conquistar o poder depois de fugir dos nacionalistas. Conhecida como "A longa marcha", a escapada dos comunistas desde o sudeste da China até o norte percorreu uns 10.000 km e cruzou com 200 milhões de pessoas no caminho, fazendo muitas cabeças e recrutando gente. Yanan é uma região montanhosa onde a terra é pedregulhosa, onde é possível construir casas escavando pequenas cavernas nos morros. Foi onde a longa marcha do exército vermelho acabou. Lá, eles se refugiaram dos ataques do poder central. Construíram casas, escolas, um centro de treinamento militar e centros de reunião para as discussões do partido. Mao Tse-tung foi eleito o chefe dos comunistas nessa época e durante uns 10 anos eles fortaleceram sua ideologia e sua força física, com a chegada ininterrupta de jovens que vinham de todas as partes para juntar-se aos vermelhos. De lá eles saíram para proclamar a Rep. Pop. da China em 1º de outubro de 1949.


Assim que chagamos na cidade, descemos do ônibus em frente à um hotel onde iríamos negociar um bom preço pra todo mundo. Enquanto esperávamos pelo resultado e pelo almoço que íamos comer por lá de qualquer forma, ficamos na rua conversando, tomando um ar. Não demorou nada até que uns artistas de rua, maravilhados com a possibilidade de fazer uns trocados com os gringos, viessem fazer suas estripulias em meio ao grupo.



Depois de almoçar, fomos visitar o museu que estava ali ao lado, sobre a revolução. Quase tudo eram fotos por lá, com alguns documentos e objetos originais expostos e umas estátuas de cera. Tudo estava explicado. Em chinês. Legal! Então, nessas horas a gente aprende a visitar um museu não pelo que ele pretende mostrar, mas pra ver com que tipo de imagens eles querem construir o imaginário alheio. Se liguem nessa pintura que está exposta.



Na China se admira muito a revolução comunista e seus heróis. Isso tudo virou quase uma lenda por aqui, um mito. Hoje em dia não se percebe nenhum fator comunista por aí, só o partido único e todo-poderoso, além de corrupto. O objeto de consumo do chinês médio parece que é um emprego no setor público, onde pode enriquecer mais facilmente, tecendo relações vantajosas com membros do partido.
Saindo do museu, fomos ver o lugar onde era a base dos dirigentes do partido quando eles estavam assentados em Yanan. Este salão era o auditório principal, onde os bambambans se reuniam. Mao deve ter falado muito aqui, e deve ter sido muito aplaudido.

Esta é uma das muitas caverninhas que serviram de moradia e escritório pros chefes do partido comunista durante o período que usaram o local como centro de suas atividades, de 1935 a 48. Dá pra entrar na maioria delas. Eram lugares muito seguros pra se proteger de bombas eventualmente lançadas contra o exército vermelho na cidade.

Num desses quartos enfiados na montanha, uma mulher cantava e recortava papéis. Produzia estes quadros feitos com uma antiga técnica de recortar papéis muito finos. Essa menina, graciossíma , que inclusive aparece em muitas das minhas fotos, é Xiaoshui, filha de uma das mulheres que trabalham nos escritórios da universidade.


Em seguida fomos visitar a pagoda da cidade, que data mais ou menos do ano 1000 d.C. Escadinhas de mão te levam por dentro da estrutura de oito andares até o topo, onde ventava sem parar, furiosamente. Fazendo a pesquisa para este post, descobri que o morro onde ela está vem tendo muitos deslizamentos de terra e que a torre deu uma inclinada de leve. Medo. Lá de cima dava pra ver a cidade inteira, que fica num pequeno vale por onde corre um rio relativamente grande.


Depois, hotel, jantar, rolê noturno num país onde dá pra sentir-se seguro em qualquer lugar.



Sono, muito sono ao acordar às sete da matina. Mas olhem que luz o sol projetava nas ruas naquela manhã de domingo.


Desjejum típico da China: sopa de arroz sem sal, verduras e legumes fritos diversos, tofu apimentado e deliciosos baozi (essas cestinhas da foto) recheados com verduras. Ah, sim, chá verde com leite de soja quente.


HuangHe - Rio Amarelo.

Rumamos a leste, até a divisa com a província de Shanxi (estamos em Shaanxi aqui), onde está uma das maiores cachoeiras da China, fichinha perto das brasileiras. Fica num vale muito bonito, onde um vento forte e constante que acompanhava o curso do rio batia na cara da gente. O sol continuava brilhando, um dia limpo e claro como é raro nestas terras. O lugar é gostoso, e o sol, o vento e a falta de turistas me fizeram sentir muito feliz ali. Cachoeira é foda, não importa onde nem porquê, é a energia da água. O rio Amarelo é bem famoso no mundo inteiro, ele atravessa metade da China pelo norte até o mar que leva o mesmo nome: Amarelo. Eu lembro desse rio das aulas de geografia da escola, engraçado, porque não gostava muito de geografia nessa época.



Tudo montadinho pros turistas chegarem perto o bastante pra sentir o spray na cara se quiserem. Ali, como em todos os lugares afins na China, estão uns caras com umas roupas típicas da região, quase um folclore, pra alugar pros visitantes tirarem fotos de si mesmo trasvestidos. Neste caso havia até umas mulas decoradas pra você subir e pagar um mico mais bonito. Na foto, Simon, um australiano muito magro que trabalhava para o governo de seu país escrevendo "traduções" dos textos das leis para uma linguagem mais acessível ao povo.

Esses caras tentavam colocar esse colete de pelo em mim, obviamente querendo cobrar se eu não me opusesse. Era duro falar "não quero!" em chinês o tempo todo.

No caminho de volta, paramos num lado da estrada porque ali está um marco de onde pode-se ver uma ponte construída recentemente. A ponte atravessa um vale bem alto, vencendo-o com uns pilares megalomaníacos. Ou seja, os chineses constroem uma ponte enorme e junto já constroem um local turístico ao lado pra você ver os pilares e falar - " Nossa! Que alto!" ... Alguém falou que são os pilares de ponte mais altos da Àsia. Deve ser, não me importo. Olha que lugar lindo por natureza ao invés disso:


Foto em grupo antes de partir. Gesticulando, na frente da galera, está José, o outro brasileiro.

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Comecei a dar aulas, acabou o bem-bom, aguardem post a respeito.

Beijocas.