domingo, 17 de fevereiro de 2008

Inverno para os olhos - parte 2



Parte 2 - De Litang (理塘) a Tiger Leaping Gorge.

Como eu ia dizendo, tivemos que pagar uma puta grana pra chegar em Xiangcheng, a pequena cidade na montanha de onde sai o ônibus para Shangrila. A paisagem no caminho era de tirar o fôlego e, como não tinha nevado ainda, era tudo tons de marrom, verde e céu azul.


Este sujeito aí embaixo foi o cara que levou a gente na sua mini-van até metade do caminho. Sim, metade do caminho, porque no meio da estrada cruzamos com outra mini-van que vinha fazendo o caminho contrário com passageiros dentro. Os motoristas pararam por um minuto pra conversar e em alguns instantes trocamos de carro com os outros viajantes, assim cada táxi podia já voltar pra sua cidade de origem. Pros passageiros não fazia diferença mesmo... Muito esperto esse povo.


Chegamos já de noite no pequeno hotel e tivemos o primeiro banho (quente!) depois de 3 dias. Na manhã seguinte, madrugada na verdade, fomos até a rua em frente à rodoviária (um pedaço de terra batida) e esperamos o motorista acordar na pequena casa de madeira onde dormia perto do seu ônibus e vir abrir a porta pra gente. Entramos, pagamos a passagem e esperamos uma meia hora até que saímos, o sol ainda não tinha raiado. Tínhamos que atravessar algumas montanhas pra cruzar a fronteira para a província de Yunnan. Perguntei para alguém: 到香格里拉, 多少时间?(quanto tempo pra chegar em Shangrila?), responderam seis horas. Pensei: "ótimo, vai dar pra curtir a tarde por lá".

Rodamos pelas montanhas por duas horas tranquilamente, o tempo estava seco e firme. Logo depois começamos a subir uma encosta onde já estava nevando. A alguns quilômetros do final da subida, o ônibus pára, atolado na neve. Eu estava distraído, nem lembro fazendo o quê, talvez ouvindo um som e, quando olhei pela janela, tinha muita neve do lado de fora. O motorista tentou tirar a roda do buraco acelerando mas não conseguiu. Ele desceu do ônibus em seguida e alguns passageiros foram com ele. Foram colocar correntes nos pneus. Não sei como estávamos rodando até aquele momento sem elas, mas enfim.


Puseram o negócio lá e começaram a cavar a neve em frente às rodas pra tentar desatolar o busão. Eu desci e fui tentar ajudar, reparando que todos os passageiros, além de nós dois e de outros dois estrangeiros, eram tibetanos. Os caras são grandes e pareciam bem acostumados com neve e com esse tipo de situação, usavam pás e picaretas pra abrir as duas valas que precisávamos para continuar.
Subimos de volta e o motorista deu uma ré pra pegar um pouco de velocidade. Conseguimos andar não mais de 20 metros. Atolamos de novo.


Eu, inocente, achava que tinha acabado, que era desatolar e mandar bala pra Shangrila. Pobre. Descemos de novo e fomos fazer a mesma coisa, quer dizer, eles, porque eu já estava exausto depois de 5 minutos cavando neve numa altitude onde o ar era bastante rarefeito e frio (eu também não estava muito em forma, é verdade). De volta ao ônibus, desta vez tivemos que ir todos para o fundo para fazer peso nas rodas de tração. Eu já estava bem nervoso nessa hora, pensando quanto tempo aquele atola-atola ia durar. O cara começa a pisar no acelerador e em vez de ir pra frente, a parte de trás do ônibus vai deslizando em direção ao desfiladeiro.
Eu suava frio nesse momento, já pensando de verdade o que fazer se de fato fôssemos morro abaixo. Pela primeira vez na minha vida pensei de fato na possibilidade da minha morte e confesso: assusta. Muito. Muito. Não sei se os tibetanos estavam muito preocupados com o perigo, mas o clima estava bem tenso, isso dava para sentir.
Depois disso conseguimos continuar mais algumas dezenas de metros até parar de novo. Respirei fundo e fiquei pensando: esta viagem vai ser foda...


Ficamos umas quatro horas nessa história de atola-cava-cava-empurra-empurra-sobe-desce para rodar uns 2 km e no meio disso, em vários momentos, eu olhava pela janela e via o precipício se aproximando e a roda deslizando em sua direção. A subida acabou e começamos a descer. Como vocês sabem, pra baixo todo santo ajuda. Empacamos mais algumas vezes mas não foi difícil prosseguir então. Pouco mais de uma hora depois chegávamos a uma pequena vila num vale entre as montanhas cheias de neve e paramos para almoçar. Isso eram lá pelas três horas da tarde.


Comemos todos numa hospedaria que havia por ali. Não pensem que a companhia pagou o almoço ou algo assim, aqui na China não existe isso. Uma hora depois voltamos para o ônibus para prosseguir, tinha mais uma montanha das grandes para vencer. Começamos a rodar e a mesma história, desta vez era ainda mais neve na estrada e os caras se ligaram que não ia rolar. Meia volta, volver, e vamos de regresso à vila. No caminho de volta atolamos e o motor morre. Nada de fazer o bicho pegar de novo. O pessoal abre o capô e começa a fuçar. Eu olhava pra cara da minha amiga e dizia com os olhos: fala sério, de verdade. Começava a escurecer e os caras lá tentando. Noite veio e decidiram que íamos andar a pé até a hospedaria. Pela primeira vez, depois daquilo tudo, me senti aliviado e seguro. Adorei poder caminhar por uma hora na neve sem enxergar picas, pelo menos eu estava seguro da minha sobrevivência, nos meus pés eu confio bastante e , além disso, foi bom pra esquentar, eu estava cagando de frio já.
Tivemos que rachar um quarto não dos mais baratos e o motorista disse que sairíamos na manhã seguinte. Eu estava feliz de estar em "terra firme" mas preocupado com o próximo dia, pensando que começaria tudo de novo.
Quando acordamos, já tarde, percebemos que não estava rolando um movimento de "vam'bora". Depois de muito insistir no mandarim, meia boca dos dois lados, do nosso e do lado dos tibetanos também, chegamos à conclusão que naquele dia não íamos a lugar nenhum.
Os outros estrangeiros, nessas, já estavam com a gente o tempo todo. Dois franceses de 20, 21 anos, alunos de chinês em pequim, muito gente boa. Decidimos ir dar uma volta e conhecer a vila, que solução.
O lugar tinha várias casas, uma afastada da outra, que formavam uma comunidade tibetana rural. Paramos para prosear com uns sujeitos que estavam tirando a neve de uma pilha de lenha. Na foto está Martin mostrando o trajeto de sua viagem num atlas chinês.


Depois de uns minutos, eles se despediram e foram andando para casa. Alguns passos de distância e eles param e acenam pra gente, chamando para ir junto. Estavam nos convidando para almoçar com a família deles.
Sem muito que falar, uma experiência inacreditável. Ofereceram o chá de manteiga de yak (vaca do Tibete), queijo de yak defumado servido com açúcar cristal, arroz e carne com batatas. Tudo parecia mágico. Só o pai e o filho mais velho falavam mandarim, a mulher, a sogra, o vizinho e o filho menor ficavam só olhando pra gente, oferecendo coisa e conversando entre eles em tibetano.
Nessa foto o cara está fazendo o chá, socando a manteiga na água fervente.





De volta a hospedaria, passamos o resto do dia assim:



Olha o que esses muleques fizeram com a neve:

Esse aí é um fazendeiro, tem família grande e planta milho.


Este outro não falava mais de duas palavras em mandarim.

De noite nos mudamos pra uma outra hospedaria, uma casa em frente ao lugar onde estávamos, onde pagamos bem mais barato. Começamos a beber bai jiu (álcool de arroz) e comer queijo fresco que encontramos por lá para comprar. Estávamos muito felizes. Os dois franceses se mostraram verdadeiros paus-d'água e eu tive que acompanhar, bebemos uma garrafa cada um. A família que morava ali estava meio que fazendo festa pra nós, os gringos. Esse garoto dançava pra gente ao som de uma música tibetana que tocava no celular de seu pai.

O cara da direita era o cozinheiro da primeira hospedaria, acabou o serviço e veio se juntar. Os amigos dele fizeram ele cantar, falando que ele mandava muito bem. Era fato, ele soltou a voz e, na sequencia, fizeram a gente entrar na onda e mostrar ao vivo umas músicas de nossos lugares de origem. Foi bem honesto.




No dia seguinte acordamos cedo e o ônibus tinha sido trazido pra frente da hospedaria, estava funcionando. Achamos que era aquilo mesmo e todo mundo entrou e esperou, mas, por algum motivo, disseram que não iríamos com ele e, sim, na caçamba de um pequeno caminhão que tinha acabado de chegar, nós todos mais os passageiros de um outro ônibus que também não tinha passado dali. Éramos mais de quarenta com toda a bagagem na traseira de um caminhão que parecia desses de transportar terra de construção. Ele estava equipado com correntes e pesado que só, foi subindo a montanha muito bem, sem derrapar nem atolar. Uma hora depois emperra, a neve estava lá pelos 50 cms. Cavam um pouco, tentam sair e a corrente estoura. Todos pegamos nossas malas nas costas e começamos a andar sendo que nós, os estrangeiros, não tínhamos idéia de até onde ou por quanto tempo. Tudo certo, já tínhamos considerado andar os 50 kms daquela montanha no dia anterior porque parecia que veículo nenhum poderia atravessar aquela neve toda. Acabamos andando 10 kms, segundo informações confiáveis. Subimos o resto da montanha numa caminhada com uma vista estúpida de linda mas lá em cima era uma nevasca, uma ventania de gelar os ossos, devia estar fazendo uns -15ºC e a neve pelos joelhos, ou pelas coxas em algumas partes. Acho que durou umas 3 horas isso tudo. Eu estava bem fora de forma (estava, agora não estou mais), parei pra descansar umas vinte vezes no caminho. Não tenho fotos dessa parte da viagem porque minha câmera estava bem protegida, muito profundamente colocada dentro da mochila grande e eu também acho que não tinha condições de ficar tirando foto.
Descendo um pouco a montanha encontramos com um pequeno ônibus que estava parado ao lado de uma picape. Provavelmente estavam ali para a nossa emergência, esperando, quero acreditar. Eu não fazia mais perguntas, meus pés estavam gelados agora que a neve que tinha entrado nos meus sapatos tinha derretido e formado um pequeno lago glacial nas minhas meias, eu só queria ir embora. E fomos. De pé no busão, depois sentado na caçamba da picape, chegamos 2 dias atrasados em Shangrila. Ninguém podia conter a alegria, principalmente nós, os gringos.
Pegamos um táxi e fomos direto com os franceses, Martin e Maxime, para uma hospedaria. Aluguei um quarto com a Lauren que tinha calefação e chuveiro com um boiler próprio. Passamos o resto do dia descansando perto do aquecedor, tomando banho quente, bebendo chá fervente e por aí vai.


Depois de toda essa aventura, eu aprecio muito mais o fato de estar vivo, existindo, respirando e tudo mais. Não vou ficar enchendo o saco de vocês aqui, só saibam que aquelas montanhas mudaram minha vida.
...


Shangrila, que só ganhou esse nome em 2001, chama-se na verdade Zhongdian. O governo da província (ou foi o municipal? ou os dois juntos?) decidiu mudar o nome da cidade para o famoso lugar mágico do livro Horizonte Perdido, do inglês James Hilton. Puro golpe publicitário para atrair turista. A cidade não tinha nada de especial, talvez tivesse alguma coisa legal perto dali mas não queríamos ver mais neve por enquanto. As ruas até que tinham bastante neve empilhada nas calçadas. Detalhe, o calçamento era de pedra lisa, dava pra patinar de tênis (?!).
Fomos no dia seguinte visitar monastério da cidade, o maior do sudeste asiático ou coisa do gênero, com mais de 600 monges vivendo nele.


Os monges eram figurassas aqui, não que em outro lugar não sejam, mas os daqui eram além do previsto. Quem sabe é por causa da quantidade em que vivem nessa que é praticamente uma cidade. Esses daí estavam fazendo mutirão para tirar a neve de um dos pátios dos templos.

Saindo de Shangrila, fomos, ainda com Martin e Maxime, mais ao sul, para um lugar chamado Tiger Leaping Gorge, algo como "a garganta do salto do tigre". Faz-se uma caminhada de dois dias por estas montanhas acompanhando o curso do rio Yangtse (o maior da china) que passa lá em baixo. As águas se estreitam entre duas serras altíssimas e paralelas, muito próximas uma da outra e bem íngremes. Neve só no topo, por onde não se passa.




Deixamos as mochilas grandes numa hospedagem na entrada do parque e levamos só o essencial, menos os franceses, que levaram tudo pensando que não iam voltar para o ponto de partida e, sim, seguir viagem a partir do final da trilha, coisa que não aconteceu. Bom pras pernas deles...
No primeiro dia, tem uma parte que o caminho sobe que nem elevador, só pra cima, pra cima, pra cima. Eu quase morri, desta vez de exaustão. (Fiquei xingando Xi'an, que é poluída pra caralho e por causa disso não tinha ainda comprado uma bicicleta e tal [estava mesmo fora de forma]).
Na foto: Maxime fazendo a preza do chá quando chegamos cansados no hostel onde íamos passar a noite no meio da floresta.

O dia 2 foi mais tranquilo. Basicamente reto e descida. Lauren, que sempre estava na frente nessas ocasiões, desta vez ficava pra trás pois não andava bem do estômago, coisas da China.


Quando terminamos a trilha, demos na estrada que leva à garganta propriamente dita. Ou seja, pode-se ir de carro também, o que não deve ter a mínima graça. Aí, pra ir ver rio de perto e a garganta lá de baixo, tem que descer uns 200 metros de altura por uma pequena trilha tortuosíssima e pagar pra uma moça que fica lá no meio cobrando porque parece que foi a família dela que construiu o caminho. Ok. Depois, quando se chega no rio, tem uma outra mulher querendo cobrar a mesma quantia, cerca de 1 euro (parece pouco, mas dá pra almoçar e jantar com essa grana às vezes), para você poder subir nas pedras enormes que estão no rio, só porque ela que botou uns pedaços toscos de madeira entre uma pedra e outra. Ela chama de ponte. Eu chamo de oportunismo de vagabundo. Dava pra pular com facilidade de uma pedra pra outra sem usar as tais pontes... ridículo.
Chineses exploradores de turistas à parte, a vista era um tezão. São dois paredões gigantescos, altos, a menos de 30 metros um do outro, com o rio turbulento passando no meio e você praticamente dentro do rio.
Essa foto eu tirei antes de, de fato, chegar lá embaixo. Nessa hora acabou a memória da câmera, que só fui conseguir descarregar e gravar um dvd três dias depois, em Lijiang


Ok, vocês não devem estar aguentando mais ler, mas façam uma forcinha pra ler o próximo post também. Prometo que darei uma trégua depois, hehehe.

suerte! tchau!

5 comentários:

Anônimo disse...

Poderia ter durado mais um pouco e eu nao teria do q reclamar...ler vc é realmente fabuloso. Embora confesso, q meu coracao de mae parou, se emocionou e ficou sem folego nas piores partes deste aventura na neve.
Vou esperar ansiosa mais relatos e fotos.
Valeu! beijos e abracos apertados
Ma

Unknown disse...

DI

NÃO TEM NEM O QUE COMENTAR... QUERO SÓ VER O PRÓXIMO POST. CONCORDO COM A SUA MÃE: PODE ESCREVER ATÉ MAIS!!! E A XTi? COMO ESTÁ SE COMPORTANDO COM AS VARIAÇÕES DE TEMPERATURA?

ABRAÇÃO

DANI

Unknown disse...

então poe logo q eu quero ler mais, mto mais, tô adorando tudo!

Anônimo disse...

hahahhahah

pô adê, nao vale querer um tibetano para vc..... hehehe

bom zé, un-fucking-believable...

o que eu posso dizer? meu bom e velho vsfd. espero cenas do proximo capitulo. vc nao odiava qdo chegava no fim do episodio e dizia "to be continued" - enfim ogni viaggio... uno sogno...

boa sorte com a nova bike, enjoy...

abraxxx

a.

Dina na China disse...

incrível Diego. Incrível mesmo. Imagino o esforço que vc deve ter feito!! Andar na neve sem roupa apropriada... que aventura!! barato total!!